terça-feira, 18 de janeiro de 2011

devia morrer-se de outra maneira.

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de Outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...

(José Gomes Ferreira)

Adoro especialmente a parte do "traje de passeio".

4 comentários:

Analog Girl disse...

Era lindo se pudesse ser assim... de repente fez-me lembrar o Big fish, a morte também parecia uma convocação para uma festa...
:)

Miri* disse...

Seria muito mais simples e de certo muito menos doloroso...

Turista disse...

Cate, não conhecia este texto e adorei. Também eu gostava de me transformar em nuvem...

Mica disse...

Adoro José Gomes Ferreira. Não conhecia este poema e é lindo. Já tenho saudades de analisar poesia em Português A!!